Hoje levantei bem cedo e logo tomei o café, me aprumei para sair e explorar. Ainda pela manhã, abri as janelas. O vento com sutileza, fez sua corrente de informação e o sol, seu breve reinado. No sopro, olho as horas e já passam das sete da noite. A luz do abajur reivindica função e logo obtém meu apoio. Detenho a música, guardo os instrumentos, fecho o livro, o tempo, o mar, o mate, as ruas, o lápis, a chuva e, creio, que tenham se recolhido, todos. Voltei para casa. As chaves permaneceram intocáveis, mas as janelas escancaradas. Estive fora, muito longe, desde cedo.
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estantes do desconhecimento
A impossibilidade de tatearmos todas as coisas que nós humanos produzimos e que nutrimos interesse, é sem dúvida assombrosa.
Da janela de um trem, observamos paradas que jamais descobriremos. Nem sentiremos o cheiro. Nos colocarmos pequeninos perante tudo isso não nos faz menores e nem amplia qualquer desânimo, pelo contrário. Outras luzes permanecem acesas.
A mínima descoberta individual amplia todo um mundo, e mais ainda, amplifica o sabor reverberante de cutucar nossas estantes de possibilidades infinitas e felizmente, desconhecidas.
que dia é hoje?
Quando criança e adolescente, enxergava nesse hábito uma pequena qualidade pessoal. Pensando aqui, acho que verdadeiramente nunca esquentei a cabeça com as minhas notas baixas na escola, principalmente quando notava que a maioria das outras crianças estavam afiadas com a lição de ontem e absolutamente nulas com a realidade de hoje.
Ainda que as notícias do dia amanheçam antigas em minha porta, todavia mantenho uma assinatura de jornal impresso; mesmo que seja uma mídia meio engessada, o jornal também se diversificou com o tempo, há editoriais, crônicas, fotos, enfim, fatos que se posicionam além das notícias e com a emergência do tempo. Gosto de ver um caderno perdido em alguma mesa e checar alguma coisa que ainda não tenha visto na rede. Ou então, ler algum prognóstico de algo que já avançou durante o dia. No fim, as informações se completam ou se dissolvem logo de uma vez.
Inicialmente, acreditava que o jornal era a voz da razão, imparcialidade e da verdade absoluta. Com o tempo, obviamente não acredito piamente nem no jornal que assino. Por isso gosto de ler algumas notícias em várias fontes para tentar ter alguma sensatez comigo mesmo. Com a internet isso extrapolou, com a possibilidade de ler um mesmo fato em jornais do mundo inteiro. É o que eu costumo fazer com alguns jornais importantes mundo afora ou de locais que já visitei. Claro que pela dificuldade linguística e impossibilidade de fazer tudo, o objetivo é mais ‘ficar por dentro’. Vale ficar só na manchete de vez em quando? Não vejo problemas, desde que esteja claro que esse é o limite da sua informação de momento.
Se eu tivesse uma empresa ou um cargo diretivo, cobraria dos meus funcionários que estivessem atualizados, seja lá o ramo que fosse. Pararia as máquinas vez em quando e promoveria discussões sem censuras, abertura de opiniões e ideias. Não é o que eu vejo por aí. A maioria forma opinião sobre os fatos, com base na opinião simples na opinião alheia, ou pior, massificada e panfletária. Sendo bem contemporâneo, com base em “mêmes”, ou apenas no que a TV “fala”. O fato de praticar a leitura já estimula o bom argumento e essa é uma ferramenta das mais poderosas, que só pode ser construída e lapidada pelo próprio indivíduo.
Ainda que breve, de vez em quando quero dar um tempo no mergulho em notícias, principalmente quando estou viajando e desejo uma vida um pouco mais leve. Certa vez estava em uma pequena cidade italiana e o proprietário de uma loja de souvenires veio puxar conversa. Quando disse que era brasileiro, ele logo veio querendo discutir sobre nossa tragédia mais recente, e eu estava completamente por fora, pois havia decidido não ler nada sobre o Brasil durante uns dias. Fiquei com aquela cara de bobo, com o italiano me contando algo que eu deveria muito saber, e eu achei que ele não fosse nunca falar. Tentando demonstrar desinteresse para afastar minha ignorância e aproveitando meu escasso domínio da língua italiana, logo troquei o assunto e nem precisei recorrer as intempéries, pois acabamos trocando ideias sobre os nossos labradores que tinham a mesma idade, Elvis e Martì. Que alívio.
Algumas vezes o jornal permanece na varanda e por lá fica uns dias. O sol se encarrega na tentativa de apagar as palavras que circunda, informa, entristece e algumas parcas vezes, anestesia o leitor da realidade; ainda que no próximo dia, um cheiro forte de tinta sob um papel vagabundo venha deselegantemente lembrar: que dia é hoje.
Arte: Fotografia de ‘The Death of Major Peirson, 6 January 1781’ (recorte)
John Singleton Copley – 1783
Óleo sobre tela
Tate Gallery – Londres
um encontro

Jules Breton (Francês, 1827–1906), Asleep in the woods, 1877 – Fonte: Storie dell’arteSem que procurasse, me deparei com esse belo retrato pictórico de Breton; instantaneamente me veio uma recordação de vida de quase trinta anos atrás, mais de um século da feitura desta idílica obra.
A cena era de alguma forma parecida, só que eu, bem menor que esta moça extasiada e precavida. Tinha uns sete anos de idade, cabelos pretíssimos fartamente encaracolados e um reluzente e extenso mundo paralelo entre a leitura e a natureza, ambas abundantes naquela casa e seu quintal, que para mim significava um retângulo infinito de possibilidades.
Havia como de costume, subido na goiabeira no meio da tarde para ler gibis e ver tudo mais alto. Não sei porque desta vez, talvez antevendo algum modo adulto, me entrelacei profundamente com o sono, só que a minha poltrona eram os braços fortes da árvore que também sustentava meu balanço.
Fui despertado sem nenhum modo. A queda, um vôo rasante, demorado e inesquecível rumo a placa de cimento – que um dia já foi muro – e ficava cerca de um metro abaixo do nível inicial do tronco, aumentando ainda mais o impacto e a dor lancinante sobre meu heróico braço sinistro e partido ao meio. Fecho os olhos por um segundo. Sinto a língua do Banzé, que me vem lamber o rosto e trazer notícias da Terra.
Levanto com dificuldades, rápido, porém ainda confuso. Caminho lento lá para baixo, chorando silencioso e segurando o mais novo estrago, o maior da minha vida até então. Banzé, faz a sua parte e como cachorro querido que era, me acompanha até a porta dos fundos. Sigo andando pelos corredores estreitos, cozinha, copa, quartos, com o intuito de encontrar alguém.
Escuto o rádio-relógio do meu Vó, sintonizado na Scala FM, tocando alguma música suave e orquestrada. O som cresce com meus passos, até ver o que previa. Ele lá em seu quarto azul clarinho, cochilando calmamente com uma mão amparando a nuca e a outra sobre a barriga magra e branquela, trajando seu calção verde e surrado da Adidas. Pela necessidade, ouso despertá-lo de seu sempre merecido descanso. Ele levanta quase em um pulo, para em seguida trocarmos um olhar assustado, pausado. Quando então, relato o encontro com essa pintura.
sopra a dança
No sétimo compasso, foi sua última dança. O silêncio crava. As mãos desvanecem. Passo a feira de quinta. Derramo a feira de quinta. O gato contempla os passos. Passo a contemplação. Passo alto. Passo eu. Passo de leve. Passo também o terraço, passo o banco de madeira. Passo. Passo o pé de manga, passo o pé de goiaba, passo o pé de pêssego, passo o pé de cana, passo o pé de flor, passo os pássaros inquilinos. Passo este verão. Passo por passo. Passo o relógio. Passos perdidos, passos ganhos, fulgurantes passos. Se inflamam emoções simples, emoções nuas, emoções sem enredo. Orquestrações baratas, naipe de metais repercutem em exclusiva missão de rodopiarem os velhos corpos. Dividem os suspiros. Dividem a água pura. Dividem o salão. Dividem a pura sensação. São abrigos. Telhados não tem cor. Cor somente no verde. Das externas paredes. Em cores. Sem ter tempo de se perder, sem ter tempo de abrir a porta para sonhos se atreverem em azuis. Sol rachando o dia. Muito clarão, tempo. Irrefletidos momentos. Caminhos pisados. Saraus reprimidos. Poucas palavras, míseros sorrisos sem afobação. Do segundo. Da dança. Sem quase. O sol é refletor dos velhos. Qualquer coisa de finito. Escalda sol, sopra. Duas horas e meia para a crescente lua. Nem quinze minutos separam a casa que é seu lugar, da dança em décadas de bemóis. Calça os sapatos e dança com sua velha mulher. Meu velho. Abotoa tua velha camisa branca. Na sala acanhada, o telefone divide o quadrado com o tapete tentando silenciar os passos. O cochilo alumia o prelúdio da dança. Fevereiro é quentura. Na televisão os três tentos da seleção brasileira sobre os americanos de camisa azul marinho e gola vermelha. O copo americano vazio aguarda o vinho seco do garrafão dormente, em chão frio. De talher apenas o garfo, que raspa elegante a comida sobre prato de vidro marrom. Almoçou meio-dia e pouco como sempre. Olha no alto. Orvalho preguiçoso desperta o mato. Sopra a manhã. Sopra o topo das árvores. Verte a dança, sopra o sétimo compasso.