magrelinha – caetano veloso

Se alguém consegue ir no âmago das composições alheias, tal qual um estudioso minucioso, este é o cara certo. A versão para esta composição belíssima de Luiz Melodia é tocante. O arranjo sensível, simples, quase piano, exalta a beleza poética que se esparrama por uma linha melódica que flerta em espamos; com a dramaticidade e a esperança de um sujeito, ou tal qual, de seu próprio país.

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encruzilhada 

Passa lá um tiozinho com sacola de mercado e ramo de alho-poró tomando sol, pote de sorvete dos bons se revelando na transparência da sacolinha verde, senhora com jaqueta estilosa em plena demasia solar, engravatado com gel nas ideias, moleques fora do eixo tomando pingado no meio fio, carro que desce, van que sobe, caminhão descarregando produtos indecifráveis, vendedor de orquídeas aguarda, casalzinho fitness procurando um espelho, alguém perdido, alguém muito convicto, adesivo no muro, cartaz no poste, sombra gigante da árvore guardando a banca de jornal, manchetes, fotos, revistas, bobagens, gente, pãozinho na padaria, finalizo o suco de melancia com gengibre, dou bom dia ao português que me responde qualquer coisa com um leve gestual de bigode e então, por fim, desço ladeira, e saio dessa encruzilhada onde acontecem coisas mais distintas do que um trabalho forte e apimentado de macumba com farofa e 51. 

Na foto, esperei com alguma insistência, a falta de presença, uma pequena dose de ninguém.

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valsas & despedidas

Derramo na praça as últimas migalhas matinais do meu croissant, quentinho e baratinho, que pego ali na estação de metrô. Observo o vai e vem húngaro e nem penso em nada além da maciez amanteigada que tenho em mãos. Mais uma vez não estou sozinho. Ela está lá, me fitando a uma distância cada vez menor. Quando viro a cabeça devagar, mastigando sem elegância, ela finge sem saber fingir. Dá uma volta, um passo lateral. Parece uma valsa desajeitada. Eu não faria pior. Nossa comunicação fica mesmo apenas no olhar. A cena vai caminhando em andamento até repetitivo, enquanto percebo exacerbar a quantidade de migalhas do folhado que pairaram e se instalaram momentaneamente no chão da Kálvin tér. Finalizada tal iguaria, levanto da mureta, olho decisivo pelo última vez para ela, e observo que agora são em três. Menos tímidas. Nem me fitam mais. Caminham agora em marcha rumo as ruínas de um saudoso café da manhã. Não gosto de despedidas. Nem olho para trás.

objetivamente fotográfico

Seja sobre uma ponte ou na boca da saída de um metrô, o processo de construção de imagens urbanas, digo por mim, que faço todo meu material na rua, é algo extremamente solitário e individualista, não que isso seja um problema, mas uma constatação que não se deve deixar para trás. Muito mais erros do que acertos na linha de contato.

Ficar por um bom tempo em um mesmo local, ajuda muito no processo de camuflagem e entendimento de um ponto específico. Deixar o cérebro na espera, para talvez, de repente começar a enxergar outros desenhos em uma cena. Mas esse processo também não é garantia que vá se construir algum material de qualidade. Há tantas fotos que despertam em “apenas um disparo”, revivendo o eterno clichê fotográfico do momento decisivo. Só que em verdade esse ‘Leitmotiv’ passa por tantas outras estações.

Há um confronto durante todo o tempo. Limitações técnicas, físicas, sociais. Se observa pelo buraco da fechadura para descobrir algo imenso, mas também há momentos para abaixar a guarda e desistir de alguma confecção que só existirá via papel, lápis e alguma imaginação. Não me agrada mexer pecinhas. Respeito o máximo que puder a organicidade da cena, mesmo que recorte algo que não me interessa e por vezes altere completamente a compreensão do espectador, mas me conforta saber que finalizei um trabalho sem deixar rastros, principalmente no meu arquivo pessoal de rememorações.

Finalizando, a moldura da beleza nem sempre é aliada. Talvez essa seja a trucagem mais traiçoeira da fotografia, até mesmo para os olhares mais experientes. Todo cuidado é pouco para não se envolver demasiadamente nesse belo refúgio de delírios visuais.

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camera obscura

Acordo com sede. Estava sonhando com fotografias. Estava sonhando na inutilidade de um monte de fotógrafos reunidos olhando para a mesma cena. Isso é um negócio que funciona bem solitário. Mas deixa pra lá. Arrasto os pés até a cozinha, respeitando a escuridão e também minhas retinas, apenas com a luz da lua iluminando alguma coisa. Como bom coruja, no caminho procuro o Elvis. Lá está alguma coisa ali na porta da sala, perto do chapeleiro, deve ser ele deitado. Teimoso, poderia estar na varanda, está bem mais fresco. Talvez ele pense o mesmo de mim. Ouço qualquer coisa, deve ser ele que mexeu uma pálpebra e meia pata ao ver essa coisa estranha passar com a elegância de um pato de boia na calçada esburacada.

Depois de colocar fim à sede por um período de cinco minutos, aproximadamente, vou até a janela dos fundos. Gosto de olhar a casa vizinha atrás do prédio. O pessoal fez reuniões que definiriam a realização da ‘Semana de Arte de 22’ por ali, quem sabe não me dá alguma mísera ideia. Até hoje nada, mas vale pela corrente de ar. Olho sempre sua arquitetura em um triunfante plongeè absoluto. Parece sempre o prelúdio de alguma cena cinemática.

Sempre penso que estou no quintal dessa casa, de fato estou. Mas do décimo quinto, que não é tão baixo. Olho na sacada dos fundos da casa e parece que há dois seguranças engravatados tomando um pouco de ar fresco entre as antigas pilastras. Lá na época do onça não havia prédios, portanto deveria ser uma bela vista para os jardins, fontes e natureza domada. Mas logo retomo e penso que deve ser muito chato ser segurança e engravatado, de um lugar que nem deve ter muito risco de assalto, mesmo para o padrão nacional que roubam qualquer coisa, mais ainda, ter que passar a noite de trabalho acompanhado de outro cara que faz a mesma função sonolenta que você e também é engravatado por uma instituição. Ou seja, nesse caso a inutilidade vem dobrada e uniformizada. E ainda por cima não se mexem, olham o vazio, cada um de um lado da varanda fazendo uma leve sombra no pátio, oriunda da luz amarelada que ilumina o espaço. Acho que estão sem assunto também, porque não ouço um pio. Também não estão fumando. Já devem saber de cor e salteado quantas folhas têm em cada árvore do quintal, se bobear deram nomes ou apelidos a elas. Olho para os prédios vizinhos em busca de algum outro cidadão infeliz que perdeu o sono e se debruça na janela em repúdio ao calor, mas logo volto a olhar para baixo e a monotonia continua intacta, mas um pouco mais embaralhada. Um pouco mais distante e bem mais real.

Desconfio dessas imagens, na verdade sempre desconfiei, deixei levar. As sombras da madrugada já fazem parte de mim e também sou sombra e dia. Vou atrás de um par de óculos, tateio a mesa e encontro um. Refaço o caminho inicial, como um perito policial refaz a cena do crime. Vejo primeiramente que infelizmente não é tão tarde e essa noite promete, como vejo também que o Elvis realmente estava ali na porta, com o focinho voltado para a parede, do tipo não me incomode – volte amanhã. Tenho meu olhar atirado para as sombras que fazem múltiplos contrastes em preto e branco na sala, são bonitas, são geométricas e modernistas. Olho um tempo para o teto e descubro mais contornos e formas, depois retorno por alguns segundos para a janela dos fundos, apenas para me certificar. Inclino minha cabeça para ver finalmente que as pessoas da casa são apenas sombras de frutos míopes e silenciosos, esculturados e arquitetados desde mil novecentos e bolinha.

15 minutos na mureta do prédio

O Brasil tá um caco, isso até meus cactos sabem. Vou escrever um texto fajuto falando disso ou daquilo da política. Nem precisa. Quedemos no povão e boa parte do dever de casa está mais do que explicado. 15 minutos sentado na mureta do prédio e já observo o circo em plena atividade, será que perdi o melhor? Preparemos a pipoca e o sal. Meu ângulo de visão se limita a uns 100 metros, mas já vale o espetáculo. Alta noite, evidentemente a molecada toma o protagonismo, mas há exceções. Avenida de média para baixa densidade no horário, próxima a faculdade. É só esperar alguns segundos e os personagens aparecem um aqui, outro ali, como se fosse um musical muito bem coreografado. Nem tudo ocorre simultaneamente. Há intermezzos para aplausos e interlúdios.
Um urina na árvore ali. Outro prefere o alívio do muro. Pessoas passam, mas ninguém parece se incomodar com a excreção. Outro passante fica só na cusparada milimétrica, nota 10. Outro acelera o carro como se fosse um bólido em pista de corrida. Um dá um tapa em um galho que faz a árvore gemer em silêncio. Um caminhão carregado de caçambas trafega com a delicadeza de um elefante se equilibrando em um triciclo na ladeira Porto Geral. Um entregador de pizzas passa bem doido. Um motorista de um carro-alegórico quer mostrar seu gosto musical para todo o planeta. Marcas distintas de jatomóveis alopram o sinal vermelho. Outros passantes gritam como se estivessem sozinhos no Saara e isso fosse legal. Acho que já está bom, vou me recolher…mas há o epílogo.
O golpe de misericórdia foi o capo de um grupo de bem nascidos, que deu uma bela porrada de esquerda na lixeira presa a um poste, com tanta força e maestria, que a fez ir a nocaute na calçada. Satisfeito com a perfomance, voltou para o bis e deu um chutaço na mesma, para gargalhadas uníssonas de meninos e meninas.
Acho que gosto de São Paulo, gosto de São João. Gosto de São Francisco. De São Sebastião. Calma que o santo é de barro, mas a rua, o bairro e a cidade não são de ninguém. Quanto mais o país.

um encontro

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Jules Breton (Francês, 1827–1906), Asleep in the woods, 1877 – Fonte: Storie dell’arteSem que procurasse, me deparei com esse belo retrato pictórico de Breton; instantaneamente me veio uma recordação de vida de quase trinta anos atrás, mais de um século da feitura desta idílica obra.

A cena era de alguma forma parecida, só que eu, bem menor que esta moça extasiada e precavida. Tinha uns sete anos de idade, cabelos pretíssimos fartamente encaracolados e um reluzente e extenso mundo paralelo entre a leitura e a natureza, ambas abundantes naquela casa e seu quintal, que para mim significava um retângulo infinito de possibilidades.

Havia como de costume, subido na goiabeira no meio da tarde para ler gibis e ver tudo mais alto. Não sei porque desta vez, talvez antevendo algum modo adulto, me entrelacei profundamente com o sono, só que a minha poltrona eram os braços fortes da árvore que também sustentava meu balanço.

Fui despertado sem nenhum modo. A queda, um vôo rasante, demorado e inesquecível rumo a placa de cimento – que um dia já foi muro – e ficava cerca de um metro abaixo do nível inicial do tronco, aumentando ainda mais o impacto e a dor lancinante sobre meu heróico braço sinistro e partido ao meio. Fecho os olhos por um segundo. Sinto a língua do Banzé, que me vem lamber o rosto e trazer notícias da Terra.

Levanto com dificuldades, rápido, porém ainda confuso. Caminho lento lá para baixo, chorando silencioso e segurando o mais novo estrago, o maior da minha vida até então. Banzé, faz a sua parte e como cachorro querido que era, me acompanha até a porta dos fundos. Sigo andando pelos corredores estreitos, cozinha, copa, quartos, com o intuito de encontrar alguém.

Escuto o rádio-relógio do meu Vó, sintonizado na Scala FM, tocando alguma música suave e orquestrada. O som cresce com meus passos, até ver o que previa. Ele lá em seu quarto azul clarinho, cochilando calmamente com uma mão amparando a nuca e a outra sobre a barriga magra e branquela, trajando seu calção verde e surrado da Adidas. Pela necessidade, ouso despertá-lo de seu sempre merecido descanso. Ele levanta quase em um pulo, para em seguida trocarmos um olhar assustado, pausado. Quando então, relato o encontro com essa pintura.

perspectiva

Árvore dormindo alinhada com fragmento humano plantado-encolhido-entregue quase vivo sobre quadrado de terra. Tríade afinada de luz asséptica, vozes internas e poste manco. Espera-o acompanhada do frio-madrugada. Perspectiva para mais feira e montes de folhas, nessa mesma calçada.

acalanto

Poema finalista do II Concurso de Poesia da Cidade de São Paulo.

Agora, apenas absorver os sons. Amanhã a esperança de despertar e sentir os acalantos da água pernoitada, reverberando. Na parede, na calçada, na grade preta cheia de pixo. Na insistência do mesmo caminho. Na arquitetura de morar. Nos olhos e nos pés sôfregos daqueles da rua. Uníssono sopro de silêncio nas folhas, troncos e verdes, firmes. Sutil e breve conciliação entre o homem e a natureza.

Felipe Gavioli

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