15 minutos na mureta do prédio

O Brasil tá um caco, isso até meus cactos sabem. Vou escrever um texto fajuto falando disso ou daquilo da política. Nem precisa. Quedemos no povão e boa parte do dever de casa está mais do que explicado. 15 minutos sentado na mureta do prédio e já observo o circo em plena atividade, será que perdi o melhor? Preparemos a pipoca e o sal. Meu ângulo de visão se limita a uns 100 metros, mas já vale o espetáculo. Alta noite, evidentemente a molecada toma o protagonismo, mas há exceções. Avenida de média para baixa densidade no horário, próxima a faculdade. É só esperar alguns segundos e os personagens aparecem um aqui, outro ali, como se fosse um musical muito bem coreografado. Nem tudo ocorre simultaneamente. Há intermezzos para aplausos e interlúdios.
Um urina na árvore ali. Outro prefere o alívio do muro. Pessoas passam, mas ninguém parece se incomodar com a excreção. Outro passante fica só na cusparada milimétrica, nota 10. Outro acelera o carro como se fosse um bólido em pista de corrida. Um dá um tapa em um galho que faz a árvore gemer em silêncio. Um caminhão carregado de caçambas trafega com a delicadeza de um elefante se equilibrando em um triciclo na ladeira Porto Geral. Um entregador de pizzas passa bem doido. Um motorista de um carro-alegórico quer mostrar seu gosto musical para todo o planeta. Marcas distintas de jatomóveis alopram o sinal vermelho. Outros passantes gritam como se estivessem sozinhos no Saara e isso fosse legal. Acho que já está bom, vou me recolher…mas há o epílogo.
O golpe de misericórdia foi o capo de um grupo de bem nascidos, que deu uma bela porrada de esquerda na lixeira presa a um poste, com tanta força e maestria, que a fez ir a nocaute na calçada. Satisfeito com a perfomance, voltou para o bis e deu um chutaço na mesma, para gargalhadas uníssonas de meninos e meninas.
Acho que gosto de São Paulo, gosto de São João. Gosto de São Francisco. De São Sebastião. Calma que o santo é de barro, mas a rua, o bairro e a cidade não são de ninguém. Quanto mais o país.

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perspectiva

Árvore dormindo alinhada com fragmento humano plantado-encolhido-entregue quase vivo sobre quadrado de terra. Tríade afinada de luz asséptica, vozes internas e poste manco. Espera-o acompanhada do frio-madrugada. Perspectiva para mais feira e montes de folhas, nessa mesma calçada.

acalanto

Poema finalista do II Concurso de Poesia da Cidade de São Paulo.

Agora, apenas absorver os sons. Amanhã a esperança de despertar e sentir os acalantos da água pernoitada, reverberando. Na parede, na calçada, na grade preta cheia de pixo. Na insistência do mesmo caminho. Na arquitetura de morar. Nos olhos e nos pés sôfregos daqueles da rua. Uníssono sopro de silêncio nas folhas, troncos e verdes, firmes. Sutil e breve conciliação entre o homem e a natureza.

Felipe Gavioli

o arquiteto

Observo o arquiteto olhando calmamente para o alto, mirando aquele velho palacete vazio do séc. XIX, que também observo todos os dias com dezenas de indagações. Não é a primeira vez que “esbarro” com aquele senhor. Dessa vez, crio coragem, saco os fones, pauso o instante e o cumprimento meio que em total reverência. Ele sorri, simpático e entre uma palavra e outra diz que seu filho também é fotógrafo. Não ouso falar muito, escuto apenas. Em um instante de alta curiosidade pergunto se mora por ali e logo certifico que somos vizinhos de rua. Nos despedimos, ele então segue seus passos sobre a urbanidade. E eu, com a sensação certificada que tive o prazer de conversar com Paulo Mendes da Rocha.

é tudo verdade, não é mentira não

Caminhando pelas ruas do bairro depois das dez da noite, avisto minha amiga Márcia sentada na calçada, na rua lateral de uma farmácia, bem próximo de um parque. Toda encolhida pela frio, com um cachecol amarelo elegantemente cobrindo a cabeça e uma sacola plástica no chão com alguns de seus pertences – o restante prefere deixar guardado em uma papelaria de um amigo – não confia em quase ninguém e se recusa a dormir em abrigos. Quando consegue algum dinheiro ou serviço, dorme em hotéis baratos, mas é raro.

Quem a conhece não está acostumado a vê-la de cima para baixo. Tiro os fones, deixo Brahms de lado e me reconecto de vez com o mundo terreno. Após nos cumprimentarmos ela me convida para sentar ali, como se convida alguém para sentar em sua sala de estar. Pede desculpa por estar cheirando a alho, que algumas vezes esfrega no rosto para espantar seus detratores durante a madrugada que se aproxima. Sinto o cheiro, mas logo me acostumo e entendo seus motivos. Quando a encontro andando por aí, sempre está perfumada e com roupas limpas. O seu jeito de se vestir é completamente personalizado. Ela mesmo costura suas roupas.

Passada algumas queixas corriqueiras e seus problemas de saúde que atormentam seus pensamentos, espero ela se realocar e então pela enésima vez escuto algum trecho de sua trajetória de vida. A habilidade para contar uma mesma história é inacreditável. Facilmente ela prende a atenção do ouvinte, a fala é clara e a voz firme, o português é bom. A minúcia de detalhes é enorme, o ritmo veloz, como um filme contemporâneo com roteiro extenso e muita pressa. Vez em quando ela retorna para o instante presente, faz alguma pergunta pra checar se está atento, puxa alguma conexão aqui ou ali ou então é distraída por alguma coisa, acende mais um cigarro, um pequeno silêncio. Logo retorna e segue adiante.

São inúmeros nomes de cidades, ruas, bairros, nomes e sobrenomes, alguns até com o número do RG. Algumas vezes sou obrigado a interromper só pra ter certeza que estou entendendo tudo, volto em algum assunto ou nome. Ela explica novamente, dessa vez em tom mais alto. Dificilmente acha graça ou sorri de algo quando conta sua história. Alguns assuntos fala em tom mais ameno, em outros fica mais grave e pausado, movimenta muito as mãos. Cerra, abre, aponta. É uma dramática sinfonia que rege.

Daquele ângulo ficamos bem próximo dos focinhos dos cachorros, da porta dos carros e dos joelhos das pessoas. Poucas nos olham. Algumas olham só para mim, outras só para ela, mas são realmente poucas. Talvez com medo, um jovem chinês engravatado estaciona seu carro de uns cento e cinquenta mil reais longe de nós, sob a faixa de pedestres, enquanto se dirige a farmácia. Uma outra deixa o cachorro latindo no carro. Logo outro senhor estaciona e assim segue. Uns judeus paramentados caminham devagar do outro lado da rua, uma criança desse lado quase esbarra no meu pé. A cidade segue lenta, mas a angústia da Márcia parece que se renova a cada minuto. O Marlboro a acalma depois de cada trago.

Passo um par de horas ali sentado de pernas cruzadas, na quase garoa. Não consigo ficar tão elegante quanto ela, sentada no beiral como se estivesse em uma bela poltrona design dos anos 50. Quando o quase vira garoa propriamente dita, abre um guarda chuva e me oferece abrigo, mas prefiro ficar do jeito que estou. Como em um final de capítulo repentino, logo decide encerrar sua história para quem sabe continuar outro dia, ou via escrita, nos cartazes que afixa nos muros, com trechos de sua história emaranhados com crônicas da sociedade. Volta a alguns assuntos cotidianos e completa com uma suas frases mais emblemáticas: “é tudo verdade, não é mentira não”.

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