Caminhando pelas ruas do bairro depois das dez da noite, avisto minha amiga Márcia sentada na calçada, na rua lateral de uma farmácia, bem próximo de um parque. Toda encolhida pela frio, com um cachecol amarelo elegantemente cobrindo a cabeça e uma sacola plástica no chão com alguns de seus pertences – o restante prefere deixar guardado em uma papelaria de um amigo – não confia em quase ninguém e se recusa a dormir em abrigos. Quando consegue algum dinheiro ou serviço, dorme em hotéis baratos, mas é raro.
Quem a conhece não está acostumado a vê-la de cima para baixo. Tiro os fones, deixo Brahms de lado e me reconecto de vez com o mundo terreno. Após nos cumprimentarmos ela me convida para sentar ali, como se convida alguém para sentar em sua sala de estar. Pede desculpa por estar cheirando a alho, que algumas vezes esfrega no rosto para espantar seus detratores durante a madrugada que se aproxima. Sinto o cheiro, mas logo me acostumo e entendo seus motivos. Quando a encontro andando por aí, sempre está perfumada e com roupas limpas. O seu jeito de se vestir é completamente personalizado. Ela mesmo costura suas roupas.
Passada algumas queixas corriqueiras e seus problemas de saúde que atormentam seus pensamentos, espero ela se realocar e então pela enésima vez escuto algum trecho de sua trajetória de vida. A habilidade para contar uma mesma história é inacreditável. Facilmente ela prende a atenção do ouvinte, a fala é clara e a voz firme, o português é bom. A minúcia de detalhes é enorme, o ritmo veloz, como um filme contemporâneo com roteiro extenso e muita pressa. Vez em quando ela retorna para o instante presente, faz alguma pergunta pra checar se está atento, puxa alguma conexão aqui ou ali ou então é distraída por alguma coisa, acende mais um cigarro, um pequeno silêncio. Logo retorna e segue adiante.
São inúmeros nomes de cidades, ruas, bairros, nomes e sobrenomes, alguns até com o número do RG. Algumas vezes sou obrigado a interromper só pra ter certeza que estou entendendo tudo, volto em algum assunto ou nome. Ela explica novamente, dessa vez em tom mais alto. Dificilmente acha graça ou sorri de algo quando conta sua história. Alguns assuntos fala em tom mais ameno, em outros fica mais grave e pausado, movimenta muito as mãos. Cerra, abre, aponta. É uma dramática sinfonia que rege.
Daquele ângulo ficamos bem próximo dos focinhos dos cachorros, da porta dos carros e dos joelhos das pessoas. Poucas nos olham. Algumas olham só para mim, outras só para ela, mas são realmente poucas. Talvez com medo, um jovem chinês engravatado estaciona seu carro de uns cento e cinquenta mil reais longe de nós, sob a faixa de pedestres, enquanto se dirige a farmácia. Uma outra deixa o cachorro latindo no carro. Logo outro senhor estaciona e assim segue. Uns judeus paramentados caminham devagar do outro lado da rua, uma criança desse lado quase esbarra no meu pé. A cidade segue lenta, mas a angústia da Márcia parece que se renova a cada minuto. O Marlboro a acalma depois de cada trago.
Passo um par de horas ali sentado de pernas cruzadas, na quase garoa. Não consigo ficar tão elegante quanto ela, sentada no beiral como se estivesse em uma bela poltrona design dos anos 50. Quando o quase vira garoa propriamente dita, abre um guarda chuva e me oferece abrigo, mas prefiro ficar do jeito que estou. Como em um final de capítulo repentino, logo decide encerrar sua história para quem sabe continuar outro dia, ou via escrita, nos cartazes que afixa nos muros, com trechos de sua história emaranhados com crônicas da sociedade. Volta a alguns assuntos cotidianos e completa com uma suas frases mais emblemáticas: “é tudo verdade, não é mentira não”.