Mês: julho 2016
a tocha felliniana
Ruídos de helicópteros atravessam rasgando uma agradável e solar manhã dominical. É a tocha olímpica. Com fogo e muito barulho, berrando a sua passagem, aqui perto de casa.
Quando a perturbação sonora aumentou em uma ascendente nada sutil, desisti por ora do meu conto onettiano. As maritacas que tagarelavam no telhado da sacada, tal qual uma orquestra de sopros, levantaram em vôo frenético, me abandonando no franzir solitário das sobrancelhas e no banho solar. Não era preciso estar na calçada para visualizar a cena, tão repetida nos últimos dias.
Entretanto, na tentativa de nos apaziguar de qualquer problema, que na verdade é muito pequeno, a nossa mente tem prazer em nos divertir. Mais rápido que um gole de ristretto, me veio as imagens da sequência inicial de ‘La Dolce Vita’ de Fellini. Ali tanta coisa já foi dita e ainda muito irá nos dizer.
A reação popular da passagem da tocha nas cidades grandes ou em pequenos vilarejos, é sem dúvida muito felliniana. É uma grande peça da “sociedade de espetáculo” de Debord, ou como cravou mais recentemente Mario Vargas Llosa, como a “civilização do espetáculo”.
“Como e por que os deuses nasceram?” indaga Mariá Zambrano em “El hombre y lo divino”.
Não há necessidade de me alongar aqui. As imagens do presente e o espelho com a sequência genial de Fellini, borbulham questionamentos e talvez até algumas respostas instantâneas (momentâneas).
estantes do desconhecimento
A impossibilidade de tatearmos todas as coisas que nós humanos produzimos e que nutrimos interesse, é sem dúvida assombrosa.
Da janela de um trem, observamos paradas que jamais descobriremos. Nem sentiremos o cheiro. Nos colocarmos pequeninos perante tudo isso não nos faz menores e nem amplia qualquer desânimo, pelo contrário. Outras luzes permanecem acesas.
A mínima descoberta individual amplia todo um mundo, e mais ainda, amplifica o sabor reverberante de cutucar nossas estantes de possibilidades infinitas e felizmente, desconhecidas.
manual para uma vida (sociedade) medíocre
Apenas imaginando. Numa roda de bate-papo elevado, teríamos pessoas de realidades e experiências diversas. Essas trocariam ideias sobre fatos e imagens comuns a mesma sociedade ou então, relatos de algum aspecto desconhecido. Somariam conceitos. Reforçariam argumentos.
A realidade é que a sociedade contemporânea carece do prazer e da necessidade de se dividir em castas. No ‘happy-hour’, na festa, na academia, no jogo…os grupos tendem a “respeitar” uma bizarra hierarquia social e intelectual.
Essa troca de experiências diversas acaba jamais existindo, ou não da maneira como deveria. O resultado é a manutenção e o polimento de uma pedra arcaica. É como uma floresta de eucaliptos, pronta para o abate. E também pronta para ser replantada. Ou de robôs de uma mesma série.
A religião e a política estão há séculos fazendo o seu papel de senhores das mentes alheias. Em plena era da midiatização, isso se arraiga sem nenhuma sutileza. Esses grupos robóticos que já não se misturam, que não exploram terrenos que não estejam programados, quebram o tédio abismal de suas vidas participando de ofensivas contra outros grupos. Nesse momento, sua mente te conduz para imagens de ataques terroristas, com razão. Mas essa imagem pode não estar tão distante. A quebra do tédio desses grupos se dá na portaria de um prédio, quando o sujeito avança todos os dias com arrogância e um ar eternamente apressado e orgulhoso a qualquer um que ouse cruzar os seus olhos de zumbi. Quebra quando o moleque na escola exibe com a arrogância dos pais, alguma coisa que o outro ainda não tem.
Quebra na igreja, quando qualquer sacerdote faz o religioso acreditar que ele deve temer ao oculto, ao castigo, como uma forma de conduta correta, a fim de preservar conceitos fabulosos e o seu espaço pós-morte. Que deve reverenciar entidades mais do que a si mesmo e a sua própria vida que escorre. Que a sua religião é mais pura e cristalina do que a do vizinho.
Sabemos que a mediocridade destas ações fazem parcerias cotidianas. O infame orgulho de classes, seja pelo fato de ser pobre ou rico, a religião do medo, a política do ódio e para completar a amarga receita, uma boa pitada de nacionalismo.
paulo e as cidades
A noite chega e a cidade vai se aquietando. Esperei esse momento para absorver com atenção o que imaginava ser algumas pitadas de alta sabedoria. Não estava errado, em pouco mais de vinte minutos, Paulo Mendes da Rocha não profere um discurso ou uma aula, mas um diálogo com o homem urbano.
Diálogo que dificilmente temos nas escolas e faculdades, com sua cartela de didáticas caducas. Diálogo raro no sofá de casa ou na mesa do bar. Diálogos impossíveis nas corporações mecanizadas e seus pensamentos robóticos.
Os papos de Paulo Mendes da Rocha são sempre de alto gabarito. Pensei em tanta gente que poderia assistir, debater e contribuir, outros que talvez estejam esculturando a vida com pensamentos obtusos. Não satisfeito, assisti uma segunda vez, dessa vez anotando os principais pontos e frases, com o objetivo de colocar aqui nessa postagem. Mas desisti. Quem se interessar de fato, vai ver. Irá concordar, discordar, repassar o papo, enfim, promover o debate. Não posso “mastigar” e desviar de contexto um conteúdo tão importante como esse.
Sempre vejo esse homem por aí, caminhando sereno, olhando pra cidade com interesse, de tal forma que penso que esse diálogo é um pequeno presente para nós. Bom proveito.
noturno

Chove. Lá fora os lampiões escuros
Augusto dos Anjos