Quando certa manhã Jorge Luís Borges acordou de sonhos intranquilos encontrou-se em sua cama transformado por um poema monstruoso. O escritor se levantou e pediu à sua secretária Maria Kodama que pegasse papel e caneta. Queria ditar os versos antes que a memória do sonho se dissolvesse.
Kodama caminhou até a escrivaninha do quarto do hotel e anotou o ditado. Naquela época, meados dos anos 70, ela já mostrava sinais da devoção que a tornaria famosa uma década mais tarde, como viúva e herdeira do grande escritor argentino.
Borges disse os versos de uma vez só, quase sem interrupções. E deu ao poema um título em alemão, “Ein Traum”, que significa, “Um sonho”. Sem nenhuma revisão ele foi publicado em 1976 pela editora espanhola Emecé. Kodama estranhou: Borges sempre usava sonhos como fonte de ideias, mas costumava corrigir e revisar seus textos obsessivamente – sobretudo os dos poemas, que a seu ver era a forma mais elevada de expressão artística.
Anos depois, quando eram mais íntimos, Kodama relembrou o episódio naquele hotel do Meio-Oeste dos Estados Unidos. Perguntou a Borges por que nunca corrigira “Ein Traum”. O poema seria melhor que os outros, seria a sua criação máxima? “Não, aquele poema não é meu”, Borges respondeu. Explicou que fora outro autor que aparecera no seu sonho para ditar as linhas. E o mesmo jamais retornara para emendá-lo. Só o autor do poema – o Outro, o Mesmo – teria direito de revisá-lo.
“Quem me ditou aquelas linhas” disse Borges, “foi Franz Kafka”.
Artigo de Alejandre Chacoff – Revista Piauí (nº 78- Março 2013)